1945 é logo ali

Douglas Mota
4 min readJun 8, 2017

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A série canadense “X Company” (foto acima) cumpre muito bem o papel de nos lembrar do que nos livramos em 1945. Ambientada na França ocupada pelos alemães e inspirada num campo real de espionagem, o thriller vai além de contar as aventuras de um grupo de espiões Aliados na luta junto à Resistência Francesa. Com sensibilidade, mostra o cotidiano de um país sob o julgo nazista. E isso inclui o extermínio dos considerados inimigos do Reich e da insensata colaboração francesa para aquele horror.

Depois de assistir a tantas pequenas tramas trágicas que acompanham a saga principal, o telespectator tende a sentir-se um lixo. Como fomos capazes daquilo?, pensei. Ainda bem que acabou, ou viveríamos no mundo fictício de “The Man in the High Castle”, superprodução da Amazon baseada no livro homônimo de ‎Philip K. Dick. Nela, o Eixo vence a Segunda Guerra, e, em vez de Estados Unidos e União Soviética, o Reich Alemão e o Império Japonês dividem o mundo, inclusive o território americano.

Apesar de as potências estarem numa espécie de guerra fria, o Japão, num gesto de aproximação diplomática, adota as leis raciais nazistas. Além disso, o racismo pauta a vida dos povos subordinados aos dois grandes impérios. Germânicos e nipônicos se consideram raças superiores, povos não-brancos vivem na clandestinidade para não serem exterminados por ambos os lados.

Sei que seria ingenuidade de minha parte acreditar que situações análogas às da ficção não aconteceram desde o fim da guerra, inclusive atualmente, na Síria, na África Subsaariana, no Leste Europeu… Mas me assusta o crescimento de um discurso que legitima esse terror por quase todo o Ocidente, sem que haja uma resistência que equivalha à presença de nossos algozes.

No dia 14 de abril, o site Vox republicou um vídeo em que Christian Picciolini, um ex-neonazista americano, conta o que fazia quando era seguidor dessa ideologia e denuncia como esses grupos vêm atenuando o discurso para ganhar alguma naturalidade perante o público, ao mesmo tempo em que praticam atentados terroristas que não recebem a mesma atenção que os dos fundamentalistas islâmicos.

Em vez de “neonazistas”, esses elementos são chamados com frequência de “supremacistas brancos” pela mídia americana. Suas raízes são omitidas, sabe-se-lá por quê. Foi assustador para mim descobrir, em três minutos no YouTube, que sinagogas foram atacadas, mas aparentemente não renderam muitas páginas nos jornais ou minutos na televisão.

Porém, os EUA não são o único país onde esses deploráveis ganham notabilidade. A então candidata da extrema-direita à presidência da França, Marine Le Pen, negou recentemente a responsabilidade da França sobre a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, aquela tão bem detalhada por “X Company”. Essa mesma personagem que apela ao nacionalismo e à retórica contra minorias, vista por alguns como tendo um tom mais moderado do que seu pai, o nazista declarado Jean-Marie Le Pen.

Nem o Brasil escapa dessa onda obscura. Justo nós, que ajudamos a libertar a Itália do fascismo há 70 anos. Não é de hoje que o senhor Jair Bolsonaro solta declarações de flerte com o autoritarismo nacionalista, mas chocaram o país as besteiras ditas em palestra ironicamente realizada no clube Hebraica Rio em abril.

Bolsonaro deixa bem claro quem são seus inimigos e, consequentemente, do Brasil, em sua visão: imigrantes, quilombolas, indígenas, LGBT+, mulheres… Quaisquer semelhanças com o führer não são mera coincidência. O discurso dos dois boçais compartilham uma técnica: é preciso definir inimigos, difamá-los com mentiras (como, aliás, neonazistas fazem hoje, conforme revelou Picciolini) e divulgá-los como inimigos da nação e do povo.

Nesse cenário tenebroso, a ficção tem a preciosa serventia de nos mostrar a que fim esse caminho leva. Mas falta engajamento. A grande mídia tem que prestar mais atenção nisso. A massa precisa ter acesso a informações que a ajude a ter visão histórica, a comparar contextos, discursos e ações. Seriados estrangeiros não vão chegar a esse público, mas o jornal do horário nobre, sim. Os professores em sala de aula, também.

Nos anos 30 e 40, não havia o acesso a informação de hoje. Para além de difundir as mentiras transvestidas de “notícias falsas”, a internet deve funcionar como meio para o esclarecimento no mundo real, offline. Que tal se além de discursos inflamados, recheados de academicismos elitistas, as pessoas cientes de todo esse caos se imaginassem no lugar do povo? Antes que seja necessário pegar em armas, a guerra necessária agora tem que ser vencida no gogó.

Qua tal começar pela poesia? “X Company” tem uma ótima inspiração, uma obra de ode à Marianne, símbolo da República Francesa (em inglês).

Texto publicado originalmente em 17 de abril de 2017 neste blog.

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Douglas Mota

Jornalista formado pela Universidade do Brasil (ECO/UFRJ), editor da @baixadazine, blogueiro (@overdosisblog), escritor de gaveta, curioso.